As músicas que compõem as tradições culturais, como as do Batuque e Marabaixo no Quilombo do Curiaú, carregam em suas letras e melodias as histórias, as dores e as resistências de um povo. Essas manifestações são mais do que celebrações: são narrativas de um passado que molda o presente. Contudo, é preciso reconhecer que, em alguns momentos, essas tradições podem reproduzir opressões, principalmente contra as mulheres, como exemplifica o recente episódio de violência simbólica durante as festividades de São Sebastião.
Historicamente, a figura feminina nas músicas de muitas culturas foi marcada por uma dualidade: ora exaltada como símbolo de força e resistência, ora reduzida a estereótipos e alvo de violência simbólica. No contexto do Marabaixo e Batuque, a mulher desempenha um papel central, como guardiã de memórias e transmissores de saberes, mas também enfrenta desafios quando letras e práticas reforçam discursos machistas.
O caso envolvendo Creuza Miranda, destacada militante quilombola e cantadeira do Curiaú, expôs como letras de caráter misógino ainda podem emergir, mesmo em espaços dedicados à celebração da ancestralidade e da resistência. A reprodução de um ladrão de Marabaixo com conteúdo machista e violento não é apenas uma afronta à figura feminina, mas também uma ferida aberta no tecido cultural da comunidade.
Este episódio levanta questões importantes: como as tradições musicais podem evoluir para refletir valores contemporâneos de igualdade e respeito, sem perder sua essência histórica? É possível preservar a memória sem perpetuar opressões? A resposta, como evidenciado pela nota de repúdio emitida pela comunidade do Curiaú, está na união entre tradição e transformação.
As rodas de Batuque e Marabaixo, frequentemente descritas como espaços de celebração e resistência, também precisam ser territórios de diálogo e reeducação. A resistência é, como apontam as mulheres do Curiaú, matriarcal. Isso significa reconhecer a força da mulher na sustentação dessas tradições e garantir que as músicas e práticas culturais reflitam essa realidade.
É encorajador perceber que a comunidade do Curiaú já deu passos importantes nesse sentido. A proibição, há quase uma década, de músicas que promovem violência simbólica é um exemplo de como a cultura pode ser revista de maneira coletiva e consciente. A exigência de retratação pública de Reginaldo Santos reforça o compromisso de que as tradições devem andar lado a lado com os princípios de respeito e igualdade.
Este caso não é isolado. Ele ecoa em diversas manifestações culturais pelo Brasil, onde, muitas vezes, a luta por igualdade enfrenta a resistência de quem acredita que mudar é trair a tradição. Porém, como mostram as mulheres do Quilombo do Curiaú, evoluir não é perder a essência, mas sim fortalecer as raízes, retirando delas as ervas daninhas que impedem um crescimento saudável.
Que as vozes das mulheres quilombolas continuem ecoando nos tambores do Marabaixo e Batuque, agora mais fortes e livres de opressões. Afinal, proteger a tradição é também garantir que ela seja um espaço de respeito, dignidade e acolhimento para todos os seus membros.